A vida passa

A vida passa. Acho que a gente vira adulto quando começa a entender que a vida passa. A vida passa pra qualquer um. A vida passa da noite pro dia. Ela pode mudar porque alguém fez uma besteira muito grande, o que o faz perder tudo que conquistou e deixar até mesmo a ideia de recomeço mais longe do possível. Isso da noite pro dia. Acabou de acontecer tão perto de mim, e tão mais perto de amigas minhas. É tão fácil deixar a vida passar. Custa tão pouco mas o custo é tão grande.
A vida passa enquanto a gente não faz o que quer fazer. A vida passa enquanto fazemos o que os outros querem que a gente faça. A vida passa enquanto não trabalhamos para realizar nossos sonhos. A vida passa enquanto vivemos para mostrar para o outros o que somos, ao inveś de sermos para nós mesmos. A vida passa enquanto gastamos horas e horas pensando no que fazer, ao invés de fazer. A vida passa enquanto não curtimos amigos e a família do jeito que deveríamos ter curtido.
Minha bisavó morreu na madrugada de sexta para sábado. Eu, evidentemente, não curti ela tanto quanto podia. Mas ela, diferentemente de mim e dessas pessoas que deixam a vida passar, viveu a vida pra ela, e não para os outros. Ou pelo menos essa é a imagem que eu tenho dela. Talvez eu não tenha sido apresentada a metade do que ela foi, mas segue a minha imagem dela, que é o que realmente importa:
Ela era uma mulher forte. Trabalhou em uma época que não se era tão comum trabalhar, criou dois filhos quase sozinha, perdeu um neto e viveu até quase os cem anos. Não ligava para o que os outros queriam que ela fizesse e fazia o que queria fazer. Não se importava em - ou já não conseguia mesmo - lembrar o nome de todas as pessoas, mesmo que fossem da família. Jogava dominó na praça, ia ao cinema sozinha, sentava sempre na mesma poltrona e dirigia um fusca. Dava de presente de natal para todos panos de prato com detalhes de croché feitos por ela própria, e hoje sinto conforto em saber que tenho vários guardados.
Todas as vezes que ela me via perguntava quando eu estaria em Malhação. Dizia que adorava assistir Malhação e apoiava esse meu lado artista, o lado que eu mais gosto de mim. Quando eu a vi sentada em uma das minhas peças fiquei emocionada. Talvez ela não tenha entendido metade da peça - que eu mesmo não entendia - e que era dirigida pelo Cico Caseira, outro ser de luz que nos deixou esse ano, mas ela estava lá. Descobri que ela era desenhista, e tudo se encaixou, então esse lado artista que ela apoiava era dela também.
Um dia, em um dos almoços de família, ela me deu uma caixinha que continha um colar e dois brincos. Até hoje eu não sei o que significam os pingentes que combinam brincos e cordões, alguns dizem que são olhos, alguns dizem que são joaninhas. O que importa é que eu sei muito bem o que eles significam para mim e para ela, mesmo que quando ela tenha me dado ela tenha dito que não os achava bonitos, mas queria que eu ficasse com eles. E sempre que eu os uso as pessoas perguntam o que são, e eu não sei responder, mas respondo que são da minha bisavó.

Eu queria ter visitado ela nesse tempo que ela já estava bem velhinha. Queria ter dito mais coisas a ela, dito quanto eu a admirava, quanto ela era importante para mim e para os almoços de família que desde que ela parou de ir não foram os mesmos. Um dia, há muito tempo atrás, quando ela ainda frequentava os almoços eu liguei para sua casa e ela não entendeu muito bem quem estava falando. Fiquei com medo dela esquecer de mim. Mas muito tempo depois descobri que ela tinha fotos minhas espalhadas pela casa. Não importa se ela não entendeu quem era ao telefone se ela tinha carinho imenso por essa minha cara que ela estampava pela casa. Tenho medo de esquecer dela, da voz dela, do cheiro dela, mas isso não vai acontecer porque sempre carregarei seus panos de pratos, sua poltrona, seus pingentes e seu apoio e carinho dentro de mim. A vida passa, mas deixa coisas tão lindas.

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