Cigarro e batom

Cigarro e batom
Sigo num ônibus lotado. É difícil até mesmo respirar. O som das buzinas se misturam às cansadas expirações de todos que, assim como eu, não veem a hora de chegar em casa. Olhando pela janela, apenas entre aberta devido a grande dificuldade que tive de abrí-la, avistei meu ponto, e subitamente levantei e puxei a corda para que o ônibus parasse. Desci as escadas com pressa, ansiando pela minha casa, e segurando tudo na mão: bolsa, caderno, livros e uma garrafa de plástico.

A garrafa de plástico estava vazia, cumprira seu papel de fornecer-me água, mas com toda a água já bebida, não possuía mais valor algum. Assim, enquanto esperava o sinal de trânsito dar a deixa para que eu atravessasse, reparei que ao meu lado havia uma lata de lixo, e fui jogar a não mais útil garrafa fora, quando deparei-me com ele: um resto de cigarro manchado de batom vermelho.  

Talvez, se não fosse pelo batom, eu nunca seria capaz de perceber aquele cigarro, imerso em tantos outros. Mas o batom jorrava feminilidade em um objeto tão neutro, tão preto e branco como aquele. Quem é essa mulher que fuma e que não se importa de gastar seu lindo batom com aquele cigarro? Certamente é uma mulher que escuta diariamente que “mulher que fuma é muito feio”, quando deveria ouvir apenas que “fumar faz mal à saúde”.

Minha heroína do cigarro com batom vermelho talvez seja uma mãe que vê no cigarro a ajuda que não recebe de seu companheiro para os cuidados da casa ou das crianças. Talvez os filhos dessa mulher peçam para que ela pare de fumar, mas como fazê-lo?

A cor intensa de seu batom poderia ser resposta à uma sociedade que a faz temer andar na rua sozinha, de dia ou de noite, no claro ou no escuro, e o batom avisa, chama “venha que eu sei me defender”, e ela diz com orgulho, mesmo que não saiba, mesmo que não possa, mesmo que não consiga, mas ela luta.

O cigarro podia estar manchado de várias cores de batom - ou até mesmo de nenhuma delas - mas estava repleto de batom vermelho como uma metáfora para todos aquelas que julgam seu jeito de vestir, falar, andar… E para aqueles que atacam diretamente a cor forte de seu batom ela diz “se EU gosto, EU posso usar”.

E aquele resto de cigarro, carregado de batom, permanecia imerso em tantos outros que não querem ou não tem a coragem de usar batom. Que nós, mulheres, sejamos sempre restos de cigarro manchados, coloridos e vibrantes de batom vermelho.

O sinal ficara da cor do batom para os carros, e mesmo sem pensar muito atravessei a rua e cheguei em casa, mas havia me transformado em cigarro, em batom, em vermelho, em mulher.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

“A senhora já tem o cartão da loja?”

Mulheres Fortes

Terremoto